O poder imagético King Kong possui é gigantesco e perpassa por várias camadas alegóricas, sendo atribuído, adjetivamente, à ferocidade e a força física e simbólica do famoso gorila imortalizado no filme homônimo de 1933, de Merian C. Cooper e Ernest B. Schoedsack. E é através dessa força imagética que Camilo Cavalcante, que parte já do próprio título do filme, canaliza esse poder e feracidade e constrói por intermédio de seu protagonista, um bucólico filme de jornada interior. “King Kong en Asunción” é um road movie doloroso, que convida o espectador a testemunhar feridas que nunca cicatrizam.
Na trama de “King Kong en Asunción” acompanhamos o já velho matador de aluguel (Andrade Júnior), que após realizar um último serviço em terras bolivianas parte para o Paraguai para encontrar com sua filha, na qual nunca conhecera. No caminho ele reencontra velhos amigos e se depara com medos interiores e violentas lembranças de seu passado. Em busca de se encontrar num mundo familiar, porém distante emocionalmente, o Matador se mistura meio a um povo sofrido, que carrega o pesado fardo do apagamento histórico e social.
Partindo de uma região desértica da Bolívia, o filme de Camilo vai construindo, lentamente, o caráter geográfico e apático dos locais em que o protagonista percorre. O caminhar e as andanças do protagonista absorvem completamente o sentido de uma viagem solitária e angustiante, fato que o longa realiza com bastante consciência, abstraindo o tempo e praticamente o congelando. Não é só a viagem que é arrastada, mas as relações também se materializam em uma outra lógica. Desprendida de um mundo supostamente afetuoso e com falsas esperanças, os personagens parecem viver num eterno ciclo de existência onde o presente é o que mais importa. Embora o protagonista possua um objetivo tangível, o futuro nunca parece ser algo efetivo e concreto, os desencontros do agora possuem mais forma e mais textura do que o porvir.
Como dito anteriormente, a geografia é força motriz na composição narrativa do filme. É ela que vai traduzir, em vários momentos, a grandeza dimensional dos lugares, evidenciando, consequentemente, a sua força híbrida passivo-agressiva, ao confrontar as pequenezes das personagens. É à partir de longos planos gerais que a obra insere a desafeição do deserto, da cidade e do centro urbano. Em contrapartida, são os primeiríssimos planos que vão investigar a trajetória do protagonista. Se nesses planos abertos o personagem se transforma em uma pessoa quase insignificante, é por meio dos planos fechados que o passado vem à tona, como uma espécie de cine-rosto, onde as marcas, as rugas e as expressões do tempo esculpem uma trajetória amarga e conflituosa. O cuidado, dentre essas expressões estilísticas citadas, é crucial para que o Matador chame o filme para si. E é nesse encontro de forças visuais que Andrade Júnior externaliza todo a sua potência em cena, numa atuação corporal vigorosa traduzida em sentimentos.
O Matador é esse ser, praticamente um arquétipo, de um sujeito inserido numa sociedade violenta, onde se desumaniza, reprimindo sentimentos e gerando assim mais violência. E é então, nessa clara apatia contraditória do protagonista, que ele se vê num obscuro mundo imperceptível de mercadorias fetichizadas. O dinheiro adquirido através do trabalho realizado permite ao Matador que compre um carro, bebidas, cigarros, que se hospede em luxosos hotéis, mas não permite que se liberte da violência de seu passado e, sendo assim, de suas angústias. Angústias essas que não são verbalizadas, mas que são externalizadas de forma física e sensorial através de pesadelos.
A não verbalização de um passado tão longínquo, porém tão pulsante, é quebrada na narrativa através de uma narração em guarani, interpretada por Ana Ivanova, à partir de um belíssimo texto da escritora Natália Borges Polesso, que rompe com as fronteiras visíveis e invisíveis, corpóreas e espirituais. Os saltos na temporalidade narrativa fazem com que a narração em off seja mais do que um guia, mas também um ser onipresente, que por meio de uma sabedoria ancestral, constrói e desconstrói caminhos trágicos para os personagens que vem e vão ao longo do filme. O saber onírico da narração pode parecer, por tantas vezes, tentar redimir o protagonista, mas não é esse o seu propósito, deixando assim que o personagem siga vagando pelos lugares, alheio ao seu próprio destino.
É com seus encontros e desencontros que o Matador percorre um árduo caminho de auto redenção e, por fim, como já demonstrava simbolicamente ao longo de toda a sua trajetória, materializando o King Kong na cena final. O não-lugar é latente, a latinoamericanidade é clara e é, só assim, na figura de um ser mitológico, que a redenção parece tomar forma. “King Kong en Asunción” é encontro, é o caminho penoso da reconfiguração de um violento passado, é a vultosa aglomeração de pessoas-personagem que possuem identidade, tradição e história. É sorte, destino, sina, castigo e, finalmente, o desejo da liberdade almejada.
Eu tô o próprio Mojica naquela foto segurando um papel escrito "eu acesso o making off"! Que alegria foi ver este filme em sua totalidade, sem os brutos cortes e com suas cores maravilhosas. A cópia restaurada era tudo o que os fãs do cinema brasileiro esperavam.
Impressionante como Mekas monta e desmonta o filme na nossa frente. Ele monta, claramente, à medida que escolhe trechos e cola em outros, criando assim esse mosaico do cotidiano. Mas ele também o desmonta quando intervém como narrador, praticamente desnudando o processo de feitura do filme, que é extremaente pessoal, artesanal e caseiro.
Eduardo Coutinho costumava dizer que a memória é montada, praticamente inventada, e aqui a gente consegue exergar a materialização disso. O filme parte de uma memória que se constrói na imagem como matéria prima, e é neste processo literal de montagem que as imagens vão ganhando um significado que existe somente quanto obra audiovisual.
Por fim, é um filme sobre nada, realmente. Como também é um filme político. Mas, acima de todas as coisas, é lindo, porque esse foi o recorte da vida esscolhido. É porque as imagens de Mekas possuem lampejos de beleza.
Cinema mutirão que convoca e inspira. Que materializa os anseios e a criatividade, mobilizando o coletivo numa potência quase ingênua, mas de arrebate. É o cinema brasileiro por nós mesmos.
Um filme que fala sobre a vida e, principlamente, da continuidade dela. Nada mais lírico do que contar essa história através do stop-motion, realizando, assim, um processo quase metalinguístico, onde a forma envolve afetivamente todo o conteúdo.
Os frames não só transformam Pinóquio num menino de verdade (desde o príncipio), mas também todos os demais personagens, que vivem e, apesar até mesmo do fascismo, seguem em frente.
“Estação do Diabo“, quando apresentado, foi descrito como um anti-musical, onde não seriam apresentadas músicas incidentais e todos os personagens as cantariam a capela. Chamar o filme de uma antítese musical é um tanto quanto exagerado, pois os elementos característicos e particulares do gênero estão presentes, que se refugia, inclusive, numa mise-en-scène meticulosa, onde personagens ocupam o quadro como num grande número ensaiado, porém de uma forma subversiva, muito mais minimalista.
O filme se inicia com uma narração em off, que além de contextualizar o período político e histórico em que a trama se passa, também serve como uma porta de entrada ao mitológico, que soa, ironicamente, fabular e cru ao mesmo tempo. A contradição entre a fantasia do musical e a austeridade narrativa, com planos longos praticamente estáticos e com uma fotografia em preto e branco, dão ao filme um caráter peculiar, que deixa o espectador envolto de sentimentos confusos. Dificilmente nos desprendermos da realidade cruel que nos é apresentada através dos personagens, embora a suspensão de descrença que permeia os musicais nunca deixe de existir.
É interessante analisar a escolha estilística em que o cineasta se propõe ao subverter um gênero, o que não é exatamente original, óbvio, mas que possui o seu claro aspecto autoral. Como o filme não possui acompanhamento instrumental em suas canções, a diegese alcança outros níveis, o que o torna mais orgânico nas apresentações das músicas, não privando a obra de se tornar também enfadonha em alguns momentos. Outro fator decisivo dentro dessa escolha narrativa, é como as canções surgem, ora na voz dos oprimidos e tantas outras vezes na voz dos opressores. Diaz consegue transmitir muito bem os sentimentos dos personagens através da colocação e da entonação das canções, sem necessariamente se fazer valer por letras.
Os monólogos apresentados, muitas vezes cantados pelos perseguidos, são extremamente solitários, enquanto o coro que mais se repete ao longo da obra é cantarolado com euforia pelos pulmões dos militares. Com consciência das posições de seus personagens dentro das próprias melodias, Diaz brinca com tal elemento, traçando o arco narrativo baseando-se nesta sutil informação. O poeta Hugo Haniway, brilhantemente interpretado por Piolo Pascual, por exemplo, passa por uma dolorosa transformação durante a trama, que pode ser traduzida na forma como seus versos são cantados, que surgem inicialmente como monólogos, passando por um longo e doloroso silêncio, até, por fim, na subversão do coro dos militares – quando Hugo parte para o enfrentamento e a resistência.
Tratando-se de uma obra com mais de 230 minutos de duração, fica difícil manter o interesse do espectador numa constante dentro dessa proposta de musical, mesmo com todo o esmero da fotografia de Larry Manda, que extraí das locações belos planos expressionistas, que servem muito bem para o entorno soturno e fabuloso da obra. Mas a repetição de melodias apresentadas desfavorece o filme, deixando-o mais cansativo do que obras mais longas do próprio cineasta, como “Do Que Vem Antes” (Mula sa kung ano ang noon, 2014), que possui quase 6 horas de duração e que não sofre com o estofo que marca algumas cenas de “Estação do Diabo“.
Porém, o que marca o filme e o que o potencializa em sua força temática, é a necessidade do cineasta em falar sobre o passado de seu país, costurando uma colcha de retalhos histórica, que em tantos momentos parece ser esquecida, abrindo precedentes para que momentos sombrios retornem, algo que vivenciamos também no Brasil, inclusive.
A força discursiva do filme é tão forte, que, mesmo após as longas horas e das diversas melodias apresentadas, uma se sobressai, seja pela sensibilidade da composição, ou pela forte letra, que é o coro daqueles que resistem e cantam para que os oprimidos despertem, os chamando em repetidas vezes de filhos da pátria. Simbólico e contundente.
“As Pequenas Margaridas” é uma verdadeira pérola da sétima arte, tecnicamente único e irônico/incisivo como nenhum outro. É uma obra atemporal como poucas, é surrealista, é provocativa, irônica e, acima de tudo, um manifesto pela liberdade.
“O Homem das Multidões” é uma obra fria, assim como a vida de seus personagens e como o estilo da vida moderna que ele coloca em voga. É um filme também cheio de camadas, que se faz por gestos e não por palavras, gestos contidos e repetitivos, que em momentos se parecem engraçados, mas que são terrivelmente assustadores.
A escolha assertiva da razão de aspecto apresentada conversa simbolicamente com toda essa solidão dos personagens, um mais analógico, como a polaroid, e outro mais digital, como o Instagram.
“Sangue de um Poeta” nos fala sobre a função do poeta e como ele enxerga o mundo através de sua sensibilidade. Com diálogos certeiros e uma narração que deixa o filme mais aberto para diversas interpretações, e frases como “Os espelhos deviam pensar um pouco mais antes de refletirem as imagens” e “Se você não tem um coração gelado, meu querido, você é um homem perdido”, nos colocam em confronto não só com o poeta, mas com nós mesmos.
“Um Dia na Vida” propõe uma reflexão sobre o que estamos acostumados a assistir na televisão, sem colocar em questão, verbalmente, se o meio de comunicação é ruim ou não, mas sim o que é transmitido através dele. Coutinho também abre mão de qualquer narração ou julgamento sobre a programação, o que vemos em “Um Dia na Vida” é praticamente um documentário de observação, onde só é mostrado o horário em que o programa estava sendo exibido e nada mais. Aqui Coutinho deixa de ser a voz questionadora de forma literal, como de costume, e passa ser um questionador através da montagem, quase como um observador, tal como um crítico espectador com um controle remoto nas mãos.
Os personagens que Hellman nos mostra são arquétipos de um existencialismo que carrega o filme, esses personagens não apresentam nomes e suas ações são muitas vezes mecânicas, sendo o silêncio da estrada o ponto comum entre eles. Nos moldes dos filmes de Robert Bresson, os fatos acontecem em constante repetição, não chegando ao clímax esperado. Os tantos rachas, furtos, as paradas em postos de gasolinas e a própria corrida que conduz o filme chega a ser tão mecânica quantos seus carros, carros esses que falam por seus personagens e que estão ali para justificarem quase todas as ações.
No fim, o destino da corrida fica em segundo plano, pois Hellman nos propõe um estudo de seus personagens, que variam em suas emoções ao decorrer da viagem. Um exemplo muito claro é a personagem de Laurie Bird, que assim como os protagonistas, muda repentinamente seus desejos e seus caminhos, seguindo todo o caminho da corrida entre os dois carros da aposta.
“Corrida sem Fim” é um filme excepcional, um retrato de uma geração, um road movie como nenhum outro, é cru, embora poético. Embarcar nessa jornada é mais do que compactuar com a corrida dos personagens, é compactuar também com as incertezas da existência.
Enérgico e deslumbrante ao levar o maracatu rural ao plano fantástico e metafísico. Há um mistério no retrato das manifestações culturais populares, em tom reverencial e praticamente etéreo. E são nesses momentos que as tradições se materializam e travam o embate contra a força fundamentalista neopentecostal, simplesmente como ato de resistência.
“O Hotel às Margens do Rio” é uma representação do banal envolto de signos e de significâncias. A simplicidade que Sang-soo expõe seus personagens é meticulosa e funcionalmente profunda. A melancolia contínua é refletida pelo hotel em sua arquitetura rigorosa em oposição aos sentimentalismos de seus personagens. Mais uma vez Hong Sang-soo se mostra como um profundo observador dos afetos e das comoções humanas, partindo de um lugar de contemplação como um próprio poeta, que enxerga na banalidade a complexidade da existência.
De uma artificialidade estética que nem parece o mesmo diretor dos três primeiros longas de sua filmografia, a aspereza foi substituída por óbvias alegorias e a contestação deu lugar a uma denúncia panfletária. Ainda sim "Piedade" tem bons momentos, principalmente quando busca encontrar o sublime meio a tanta pasteurização.
"Vitalina Varela" poderia ser um canto de amargura, um desencanto da esperança, mas ele vai além, é transgressor. Não é puramente no pesar que Costa se debruça ao narrar o luto de seus personagens, mas também numa sublime esperança. Não é por acaso que a última cena, que pode ser uma memória ou um sonho eloquente, faz o contraponto não só do primeiro plano do longa, mas também de quase todo ele. A casa, o telhado, a luz e o casal são o acolhimento e o reconforto que os personagens merecem. Que um povo merece. Há o direito de sonhar.
Interessante como o filme funciona partindo de uma abordagem extremamente pessoal e que acaba imergindo em questões de gênero pertinentes, que a priori podem parecer simples, através dessa abordagem escolhida, mas que são complexas em suas construções sociais e bem colocadas narrativamente. E tudo isso é conduzido de uma forma leve, mas não menos contundente.
Interessante observar como Bing consegue abordar pautas pertinentes como violência doméstica e ausência paternal de forma tão orgânica, estreitando os laços narrativos e simbólicos que permeiam os três personagens em comum.
São muitas camadas extraídas, mas que de um modo geral compõe o sufocante estilo de vida americano, que Bing escancara como um estilo de vida falido. As dúvidas, os traumas e os pormenores soltam aos olhos pela franqueza dos depoimentos, muito por conta da proximidade dos personagens com o realizador e a sagacidade da montagem que consegue reafirmar a força de algumas falas com a cena seguinte.
"Minding the Gap" é um ótimo mosaico sobre um grupo de amigos, mas vai além e, diante do micro, se apresenta o macro.
Apesar de se justificar através de imagens de arquivo exploratórias, o que deixa o filme eticamente duvidoso, a construção minuciosa do horror através das subversões morais é fenomenal. Se por uma lado a obra de Narciso Ibáñez soa em alguns momentos conservadora em seu desenrolar, tematicamente falando, a trama esbarra nesse discurso conservador/moralista, e até mesmo imperialista, e a transforma numa revolução horripilante.
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King Kong en Asunción
3.4 11O poder imagético King Kong possui é gigantesco e perpassa por várias camadas alegóricas, sendo atribuído, adjetivamente, à ferocidade e a força física e simbólica do famoso gorila imortalizado no filme homônimo de 1933, de Merian C. Cooper e Ernest B. Schoedsack. E é através dessa força imagética que Camilo Cavalcante, que parte já do próprio título do filme, canaliza esse poder e feracidade e constrói por intermédio de seu protagonista, um bucólico filme de jornada interior. “King Kong en Asunción” é um road movie doloroso, que convida o espectador a testemunhar feridas que nunca cicatrizam.
Na trama de “King Kong en Asunción” acompanhamos o já velho matador de aluguel (Andrade Júnior), que após realizar um último serviço em terras bolivianas parte para o Paraguai para encontrar com sua filha, na qual nunca conhecera. No caminho ele reencontra velhos amigos e se depara com medos interiores e violentas lembranças de seu passado. Em busca de se encontrar num mundo familiar, porém distante emocionalmente, o Matador se mistura meio a um povo sofrido, que carrega o pesado fardo do apagamento histórico e social.
Partindo de uma região desértica da Bolívia, o filme de Camilo vai construindo, lentamente, o caráter geográfico e apático dos locais em que o protagonista percorre. O caminhar e as andanças do protagonista absorvem completamente o sentido de uma viagem solitária e angustiante, fato que o longa realiza com bastante consciência, abstraindo o tempo e praticamente o congelando. Não é só a viagem que é arrastada, mas as relações também se materializam em uma outra lógica. Desprendida de um mundo supostamente afetuoso e com falsas esperanças, os personagens parecem viver num eterno ciclo de existência onde o presente é o que mais importa. Embora o protagonista possua um objetivo tangível, o futuro nunca parece ser algo efetivo e concreto, os desencontros do agora possuem mais forma e mais textura do que o porvir.
Como dito anteriormente, a geografia é força motriz na composição narrativa do filme. É ela que vai traduzir, em vários momentos, a grandeza dimensional dos lugares, evidenciando, consequentemente, a sua força híbrida passivo-agressiva, ao confrontar as pequenezes das personagens. É à partir de longos planos gerais que a obra insere a desafeição do deserto, da cidade e do centro urbano. Em contrapartida, são os primeiríssimos planos que vão investigar a trajetória do protagonista. Se nesses planos abertos o personagem se transforma em uma pessoa quase insignificante, é por meio dos planos fechados que o passado vem à tona, como uma espécie de cine-rosto, onde as marcas, as rugas e as expressões do tempo esculpem uma trajetória amarga e conflituosa. O cuidado, dentre essas expressões estilísticas citadas, é crucial para que o Matador chame o filme para si. E é nesse encontro de forças visuais que Andrade Júnior externaliza todo a sua potência em cena, numa atuação corporal vigorosa traduzida em sentimentos.
O Matador é esse ser, praticamente um arquétipo, de um sujeito inserido numa sociedade violenta, onde se desumaniza, reprimindo sentimentos e gerando assim mais violência. E é então, nessa clara apatia contraditória do protagonista, que ele se vê num obscuro mundo imperceptível de mercadorias fetichizadas. O dinheiro adquirido através do trabalho realizado permite ao Matador que compre um carro, bebidas, cigarros, que se hospede em luxosos hotéis, mas não permite que se liberte da violência de seu passado e, sendo assim, de suas angústias. Angústias essas que não são verbalizadas, mas que são externalizadas de forma física e sensorial através de pesadelos.
A não verbalização de um passado tão longínquo, porém tão pulsante, é quebrada na narrativa através de uma narração em guarani, interpretada por Ana Ivanova, à partir de um belíssimo texto da escritora Natália Borges Polesso, que rompe com as fronteiras visíveis e invisíveis, corpóreas e espirituais. Os saltos na temporalidade narrativa fazem com que a narração em off seja mais do que um guia, mas também um ser onipresente, que por meio de uma sabedoria ancestral, constrói e desconstrói caminhos trágicos para os personagens que vem e vão ao longo do filme. O saber onírico da narração pode parecer, por tantas vezes, tentar redimir o protagonista, mas não é esse o seu propósito, deixando assim que o personagem siga vagando pelos lugares, alheio ao seu próprio destino.
É com seus encontros e desencontros que o Matador percorre um árduo caminho de auto redenção e, por fim, como já demonstrava simbolicamente ao longo de toda a sua trajetória, materializando o King Kong na cena final. O não-lugar é latente, a latinoamericanidade é clara e é, só assim, na figura de um ser mitológico, que a redenção parece tomar forma. “King Kong en Asunción” é encontro, é o caminho penoso da reconfiguração de um violento passado, é a vultosa aglomeração de pessoas-personagem que possuem identidade, tradição e história. É sorte, destino, sina, castigo e, finalmente, o desejo da liberdade almejada.
Quando os Deuses Adormecem
3.2 8Eu tô o próprio Mojica naquela foto segurando um papel escrito "eu acesso o making off"! Que alegria foi ver este filme em sua totalidade, sem os brutos cortes e com suas cores maravilhosas. A cópia restaurada era tudo o que os fãs do cinema brasileiro esperavam.
Ao Caminhar Entrevi Lampejos de Beleza
4.6 32Impressionante como Mekas monta e desmonta o filme na nossa frente. Ele monta, claramente, à medida que escolhe trechos e cola em outros, criando assim esse mosaico do cotidiano. Mas ele também o desmonta quando intervém como narrador, praticamente desnudando o processo de feitura do filme, que é extremaente pessoal, artesanal e caseiro.
Eduardo Coutinho costumava dizer que a memória é montada, praticamente inventada, e aqui a gente consegue exergar a materialização disso. O filme parte de uma memória que se constrói na imagem como matéria prima, e é neste processo literal de montagem que as imagens vão ganhando um significado que existe somente quanto obra audiovisual.
Por fim, é um filme sobre nada, realmente. Como também é um filme político. Mas, acima de todas as coisas, é lindo, porque esse foi o recorte da vida esscolhido. É porque as imagens de Mekas possuem lampejos de beleza.
A Cidade dos Abismos
3.0 6Uma missa rezada pelo Padre Júlio Lancellotti, enquanto Arrigo Barnabé toca órgão. Preciosidades que vemos somente no cinema brasileiro.
Cervejas no Escuro
3.5 1Cinema mutirão que convoca e inspira. Que materializa os anseios e a criatividade, mobilizando o coletivo numa potência quase ingênua, mas de arrebate. É o cinema brasileiro por nós mesmos.
Aftersun
4.1 709Quando um filme não diz, mas mostra o que ele quer dizer com tamanha sensibilidade, é porque ele é especial.
Pinóquio
4.2 542 Assista AgoraUm filme que fala sobre a vida e, principlamente, da continuidade dela. Nada mais lírico do que contar essa história através do stop-motion, realizando, assim, um processo quase metalinguístico, onde a forma envolve afetivamente todo o conteúdo.
Os frames não só transformam Pinóquio num menino de verdade (desde o príncipio), mas também todos os demais personagens, que vivem e, apesar até mesmo do fascismo, seguem em frente.
Estação do Diabo
3.6 7“Estação do Diabo“, quando apresentado, foi descrito como um anti-musical, onde não seriam apresentadas músicas incidentais e todos os personagens as cantariam a capela. Chamar o filme de uma antítese musical é um tanto quanto exagerado, pois os elementos característicos e particulares do gênero estão presentes, que se refugia, inclusive, numa mise-en-scène meticulosa, onde personagens ocupam o quadro como num grande número ensaiado, porém de uma forma subversiva, muito mais minimalista.
O filme se inicia com uma narração em off, que além de contextualizar o período político e histórico em que a trama se passa, também serve como uma porta de entrada ao mitológico, que soa, ironicamente, fabular e cru ao mesmo tempo. A contradição entre a fantasia do musical e a austeridade narrativa, com planos longos praticamente estáticos e com uma fotografia em preto e branco, dão ao filme um caráter peculiar, que deixa o espectador envolto de sentimentos confusos. Dificilmente nos desprendermos da realidade cruel que nos é apresentada através dos personagens, embora a suspensão de descrença que permeia os musicais nunca deixe de existir.
É interessante analisar a escolha estilística em que o cineasta se propõe ao subverter um gênero, o que não é exatamente original, óbvio, mas que possui o seu claro aspecto autoral. Como o filme não possui acompanhamento instrumental em suas canções, a diegese alcança outros níveis, o que o torna mais orgânico nas apresentações das músicas, não privando a obra de se tornar também enfadonha em alguns momentos. Outro fator decisivo dentro dessa escolha narrativa, é como as canções surgem, ora na voz dos oprimidos e tantas outras vezes na voz dos opressores. Diaz consegue transmitir muito bem os sentimentos dos personagens através da colocação e da entonação das canções, sem necessariamente se fazer valer por letras.
Os monólogos apresentados, muitas vezes cantados pelos perseguidos, são extremamente solitários, enquanto o coro que mais se repete ao longo da obra é cantarolado com euforia pelos pulmões dos militares. Com consciência das posições de seus personagens dentro das próprias melodias, Diaz brinca com tal elemento, traçando o arco narrativo baseando-se nesta sutil informação. O poeta Hugo Haniway, brilhantemente interpretado por Piolo Pascual, por exemplo, passa por uma dolorosa transformação durante a trama, que pode ser traduzida na forma como seus versos são cantados, que surgem inicialmente como monólogos, passando por um longo e doloroso silêncio, até, por fim, na subversão do coro dos militares – quando Hugo parte para o enfrentamento e a resistência.
Tratando-se de uma obra com mais de 230 minutos de duração, fica difícil manter o interesse do espectador numa constante dentro dessa proposta de musical, mesmo com todo o esmero da fotografia de Larry Manda, que extraí das locações belos planos expressionistas, que servem muito bem para o entorno soturno e fabuloso da obra. Mas a repetição de melodias apresentadas desfavorece o filme, deixando-o mais cansativo do que obras mais longas do próprio cineasta, como “Do Que Vem Antes” (Mula sa kung ano ang noon, 2014), que possui quase 6 horas de duração e que não sofre com o estofo que marca algumas cenas de “Estação do Diabo“.
Porém, o que marca o filme e o que o potencializa em sua força temática, é a necessidade do cineasta em falar sobre o passado de seu país, costurando uma colcha de retalhos histórica, que em tantos momentos parece ser esquecida, abrindo precedentes para que momentos sombrios retornem, algo que vivenciamos também no Brasil, inclusive.
A força discursiva do filme é tão forte, que, mesmo após as longas horas e das diversas melodias apresentadas, uma se sobressai, seja pela sensibilidade da composição, ou pela forte letra, que é o coro daqueles que resistem e cantam para que os oprimidos despertem, os chamando em repetidas vezes de filhos da pátria. Simbólico e contundente.
As Pequenas Margaridas
4.2 267 Assista Agora“As Pequenas Margaridas” é uma verdadeira pérola da sétima arte, tecnicamente único e irônico/incisivo como nenhum outro. É uma obra atemporal como poucas, é surrealista, é provocativa, irônica e, acima de tudo, um manifesto pela liberdade.
O Homem das Multidões
3.4 107“O Homem das Multidões” é uma obra fria, assim como a vida de seus personagens e como o estilo da vida moderna que ele coloca em voga. É um filme também cheio de camadas, que se faz por gestos e não por palavras, gestos contidos e repetitivos, que em momentos se parecem engraçados, mas que são terrivelmente assustadores.
A escolha assertiva da razão de aspecto apresentada conversa simbolicamente com toda essa solidão dos personagens, um mais analógico, como a polaroid, e outro mais digital, como o Instagram.
O Sangue de um Poeta
4.2 44“Sangue de um Poeta” nos fala sobre a função do poeta e como ele enxerga o mundo através de sua sensibilidade. Com diálogos certeiros e uma narração que deixa o filme mais aberto para diversas interpretações, e frases como “Os espelhos deviam pensar um pouco mais antes de refletirem as imagens” e “Se você não tem um coração gelado, meu querido, você é um homem perdido”, nos colocam em confronto não só com o poeta, mas com nós mesmos.
Um Dia na Vida
4.1 72“Um Dia na Vida” propõe uma reflexão sobre o que estamos acostumados a assistir na televisão, sem colocar em questão, verbalmente, se o meio de comunicação é ruim ou não, mas sim o que é transmitido através dele. Coutinho também abre mão de qualquer narração ou julgamento sobre a programação, o que vemos em “Um Dia na Vida” é praticamente um documentário de observação, onde só é mostrado o horário em que o programa estava sendo exibido e nada mais. Aqui Coutinho deixa de ser a voz questionadora de forma literal, como de costume, e passa ser um questionador através da montagem, quase como um observador, tal como um crítico espectador com um controle remoto nas mãos.
Corrida Sem Fim
3.9 59Os personagens que Hellman nos mostra são arquétipos de um existencialismo que carrega o filme, esses personagens não apresentam nomes e suas ações são muitas vezes mecânicas, sendo o silêncio da estrada o ponto comum entre eles. Nos moldes dos filmes de Robert Bresson, os fatos acontecem em constante repetição, não chegando ao clímax esperado. Os tantos rachas, furtos, as paradas em postos de gasolinas e a própria corrida que conduz o filme chega a ser tão mecânica quantos seus carros, carros esses que falam por seus personagens e que estão ali para justificarem quase todas as ações.
No fim, o destino da corrida fica em segundo plano, pois Hellman nos propõe um estudo de seus personagens, que variam em suas emoções ao decorrer da viagem. Um exemplo muito claro é a personagem de Laurie Bird, que assim como os protagonistas, muda repentinamente seus desejos e seus caminhos, seguindo todo o caminho da corrida entre os dois carros da aposta.
“Corrida sem Fim” é um filme excepcional, um retrato de uma geração, um road movie como nenhum outro, é cru, embora poético. Embarcar nessa jornada é mais do que compactuar com a corrida dos personagens, é compactuar também com as incertezas da existência.
Azougue Nazaré
3.9 34Enérgico e deslumbrante ao levar o maracatu rural ao plano fantástico e metafísico. Há um mistério no retrato das manifestações culturais populares, em tom reverencial e praticamente etéreo. E são nesses momentos que as tradições se materializam e travam o embate contra a força fundamentalista neopentecostal, simplesmente como ato de resistência.
O Hotel às Margens do Rio
3.4 12“O Hotel às Margens do Rio” é uma representação do banal envolto de signos e de significâncias. A simplicidade que Sang-soo expõe seus personagens é meticulosa e funcionalmente profunda. A melancolia contínua é refletida pelo hotel em sua arquitetura rigorosa em oposição aos sentimentalismos de seus personagens. Mais uma vez Hong Sang-soo se mostra como um profundo observador dos afetos e das comoções humanas, partindo de um lugar de contemplação como um próprio poeta, que enxerga na banalidade a complexidade da existência.
Piedade
3.2 78 Assista AgoraDe uma artificialidade estética que nem parece o mesmo diretor dos três primeiros longas de sua filmografia, a aspereza foi substituída por óbvias alegorias e a contestação deu lugar a uma denúncia panfletária. Ainda sim "Piedade" tem bons momentos, principalmente quando busca encontrar o sublime meio a tanta pasteurização.
Vitalina Varela
3.8 24 Assista Agora"Vitalina Varela" poderia ser um canto de amargura, um desencanto da esperança, mas ele vai além, é transgressor. Não é puramente no pesar que Costa se debruça ao narrar o luto de seus personagens, mas também numa sublime esperança. Não é por acaso que a última cena, que pode ser uma memória ou um sonho eloquente, faz o contraponto não só do primeiro plano do longa, mas também de quase todo ele. A casa, o telhado, a luz e o casal são o acolhimento e o reconforto que os personagens merecem. Que um povo merece. Há o direito de sonhar.
Até O Fim
3.9 18Ary Rosa e Glenda Nicácio são um presente para o cinema brasileiro!
O Tango de Satã
4.3 139O filme só cresceu na revisão, como se ainda fosse possível.
Estou impactado, que aula de montagem. Soberbo!
As Lindas
3.8 5Interessante como o filme funciona partindo de uma abordagem extremamente pessoal e que acaba imergindo em questões de gênero pertinentes, que a priori podem parecer simples, através dessa abordagem escolhida, mas que são complexas em suas construções sociais e bem colocadas narrativamente. E tudo isso é conduzido de uma forma leve, mas não menos contundente.
Belo documentário.
Minding the Gap
4.1 73Interessante observar como Bing consegue abordar pautas pertinentes como violência doméstica e ausência paternal de forma tão orgânica, estreitando os laços narrativos e simbólicos que permeiam os três personagens em comum.
São muitas camadas extraídas, mas que de um modo geral compõe o sufocante estilo de vida americano, que Bing escancara como um estilo de vida falido. As dúvidas, os traumas e os pormenores soltam aos olhos pela franqueza dos depoimentos, muito por conta da proximidade dos personagens com o realizador e a sagacidade da montagem que consegue reafirmar a força de algumas falas com a cena seguinte.
"Minding the Gap" é um ótimo mosaico sobre um grupo de amigos, mas vai além e, diante do micro, se apresenta o macro.
Os Meninos
3.9 104Apesar de se justificar através de imagens de arquivo exploratórias, o que deixa o filme eticamente duvidoso, a construção minuciosa do horror através das subversões morais é fenomenal. Se por uma lado a obra de Narciso Ibáñez soa em alguns momentos conservadora em seu desenrolar, tematicamente falando, a trama esbarra nesse discurso conservador/moralista, e até mesmo imperialista, e a transforma numa revolução horripilante.