Apesar de conter clichês de filmes de terror como o típico personagem burro que volta para a toca do lobo ao invés de fugir na primeira oportunidade, Barbarian sugere um estudo antropológico que considerei bem bacana (para muitos, pode parecer militância) sem soar forçado e traz uma mensagem de "as coisas não são tão preto no branco" que instiga várias reflexões tanto relacionadas às atitudes dos personagens de forma isolada como à forma que essas atitudes se entrelaçam e geram novas ações, inclusive as ditas "clichês e burras". O personagem Keith, mesmo com uma participação breve, possui ações e falas que eu acredito reverberarem durante o decorrer do filme.
A princípio, a dinâmica "mulher com medo de compartilhar espaço com um homem desconhecido" pode parecer meio batida (apesar de realista e justificada), mas o filme vai se desenvolvendo e a gente descobre que o Keith era só um cara normal no bom e mau sentido. Bom porque ele não era o verdadeiro vilão, era o amiguinho das mulheres e falas que o personagem solta como "nem todo cara é malvado e algumas mulheres também machucam" fazem sentido dentro daquela dinâmica e certamente influenciam no fato da personagem, por exemplo, voltar para tentar salvar o AJ, talvez por um sentimento de culpa por ter duvidado/tido medo do Keith e ter supostamente causado a morte dele; mau porque, apesar de ser um cara bonzinho e confiável, no fundo carrega aquela visão sexista de que "só a palavra de uma mulher não basta/não tem valor e mesmo que ela tenha narrado detalhadamente um cativeiro, eu preciso ver para ter certeza de que ela não é só uma mulherzinha histérica surtando por qualquer coisa", como a personagem supostamente surtou na noite anterior pela porta aberta. Só nisso, acredito que já dá pra refletir sobre tanto questões sociais como também na "dualidade" das pessoas, o que fica ainda mais explícito em outros personagens.
"Keith invertido": ele não é gentil, tem um jeito grosseiro, canalha e, ainda assim, covarde. O lance em torno do estupro é interessante pois, apesar do cara narrar um 'estupro romantizado' no bar, a gente ainda dá ao personagem o benefício da dúvida (trazendo, mais uma vez, aquele discurso de "só a palavra da mulher não é o suficiente", mesmo se o cara disser "eu de fato fiz isso" cheio de eufemismos), mas também traz uma questão que considerei interessante: AJ é um homem criado em um mundo de homens e para homens, ele certamente tem uma criação, cultura e educação diferente de homens como Keith, ele aparenta acreditar verdadeiramente que o "não" da moça foi um charme que ela jogou, ele acredita que o assédio moral que induziu o ocorrido foi uma forma de galantear, de convencer e, bêbado, em um momento fragilizado e percebendo as consequências do que fez, ele aparenta começar a compreender que sim, "talvez eu tenha estuprado ela", mas não é uma reflexão genuína sobre as atitudes que podem ter acarretado nisso e sim algo que ele só se interessa a partir do momento que o afeta. Outro momento em que o personagem aparenta não perceber/se importar com aquilo que não o afeta é a relação com o imóvel, ele vê várias coisas estranhas, mas só consegue pensar "que bacana, mais área! Como eu posso lucrar com isso?", ele vê objetos de valor de outras pessoas e trata como lixo (como a mala de Keith que mexe e desfaz de qualquer jeito ou o laptop de Tess que arremessa na cômoda), ele só quer ser bom "para compensar" quando percebe suas ações ruins, algumas por egocentrismo, outras por medo e senso de sobrevivência, o que para mim, apesar do personagem ser um crápula, sugere mais uma vez a dualidade das coisas e até nos faz pensar sobre como perdoamos homens com uma certa facilidade quando eles fazem merda em uma frequência avassaladora e logo em seguida prometem melhorar.
Sobre a protagonista, Tess engloba duas coisas que ficam muito visíveis na cena
dos policiais: um recorte de raça e gênero. Ela é uma mulher preta em um bairro marginalizado, os policiais (um deles inclusive preto, o que reforça ainda mais a questão da mulher preta como extremamente vulnerabilizada) a veem como uma louca, drogada e sequer sugerem algum tipo de apoio, o que fala MUITO sobre questões raciais, de gênero, de SAÚDE PÚBLICA (inexistente nos EUA rs) e do treinamento e serviço prestado pelos agentes de segurança, mas essa é só a cena mais explícita. Há negligência durante os telefonemas com policiais que vêem tudo como exagero, um problema pequeno aumentado 'por uma mulher histérica', Tess é silenciada quando alerta Keith sobre o cativeiro e quando alerta AJ que haverá consequências se ele irritar a mulher, ela é silenciada e apagada o tempo todo e, ainda assim, se sente culpada pelas atitudes dos outros, tenta ajudar, salvar como se fosse responsável. Existe uma confusão entre o sentimento de precisar se proteger de violências estruturais causadas por esses recortes sociais, mas também existe uma forte questão cultural que culpa a mulher por tentar se proteger (os adjetivos já citados como loucura, histeria, exagero etc, que invalidam um sofrimento estrutural) e, ironicamente, a única pessoa que a protege é a mulher monstruosa que tenta mantê-la cativa.
A mulher é outro personagem bem triste e interessante.
É uma filha da violência, a forma que ela se expressa verbalmente dá a entender que nunca houve socialização sequer com os genitores e as únicas coisas que ela compreende são a violência (na qual ela foi criada e teme, abomina e reproduz) e o amor (que ela vê naquele televisor e almeja), sendo que ambos acabam se mesclando. O fato dela prender as pessoas, por exemplo, vejo como a forma que ela provavelmente aprendeu a amar, já que o 'pai' fazia isso, enquanto a cena do Keith provavelmente foi uma forma de abominar enquanto reproduzir violência, já que ela fica nervosa com a gritaria e encerra da pior forma possível. Acredito que o fato dela ser super forte seja algo meio simbólico também, que o anseio pela maternidade como uma forma pura e genuína de amor e por proteger a cria a torna assim. Quando a Tess aceita a mamadeira e o afago, creio que a personagem vê como um carinho mútuo e por isso busca forças para manter aquela relação consigo, para proteger o bebê com sua própria vida e atacar quem ameaçar sua cria. Em contrapartida, ela não consegue violentar quem ofereceu esse amor genuíno. Sobre o maníaco, acredito que seja unânime que é um monstro, uma personificação do vilão (digo personificação por crer que o vilão é um sistema muito mais cultural do que uma pessoa em si) responsável não apenas pelos crimes das fitas, mas provavelmente pela queda de valor do bairro devido ao desaparecimento de mulheres, que nunca foi punido e decidiu como viver e morrer, assim como o que fazer com as vidas dessas mulheres.
Enfim, não acho que seja o filme do ano, longe disso, mas é um filme bem bacana principalmente considerando que é um filme com uma pegada mais popular, que diverte, bota pra pensar sem muito juízo de julgamento, apenas contextualizando as situações e, apesar da fantasia, acaba sendo estranhamente familiar, o que é péssimo. Diria que foi uma grata surpresa.
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3.4 1,0K Assista AgoraApesar de conter clichês de filmes de terror como o típico personagem burro que volta para a toca do lobo ao invés de fugir na primeira oportunidade, Barbarian sugere um estudo antropológico que considerei bem bacana (para muitos, pode parecer militância) sem soar forçado e traz uma mensagem de "as coisas não são tão preto no branco" que instiga várias reflexões tanto relacionadas às atitudes dos personagens de forma isolada como à forma que essas atitudes se entrelaçam e geram novas ações, inclusive as ditas "clichês e burras".
O personagem Keith, mesmo com uma participação breve, possui ações e falas que eu acredito reverberarem durante o decorrer do filme.
A princípio, a dinâmica "mulher com medo de compartilhar espaço com um homem desconhecido" pode parecer meio batida (apesar de realista e justificada), mas o filme vai se desenvolvendo e a gente descobre que o Keith era só um cara normal no bom e mau sentido. Bom porque ele não era o verdadeiro vilão, era o amiguinho das mulheres e falas que o personagem solta como "nem todo cara é malvado e algumas mulheres também machucam" fazem sentido dentro daquela dinâmica e certamente influenciam no fato da personagem, por exemplo, voltar para tentar salvar o AJ, talvez por um sentimento de culpa por ter duvidado/tido medo do Keith e ter supostamente causado a morte dele; mau porque, apesar de ser um cara bonzinho e confiável, no fundo carrega aquela visão sexista de que "só a palavra de uma mulher não basta/não tem valor e mesmo que ela tenha narrado detalhadamente um cativeiro, eu preciso ver para ter certeza de que ela não é só uma mulherzinha histérica surtando por qualquer coisa", como a personagem supostamente surtou na noite anterior pela porta aberta. Só nisso, acredito que já dá pra refletir sobre tanto questões sociais como também na "dualidade" das pessoas, o que fica ainda mais explícito em outros personagens.
Já AJ, é basicamente o
"Keith invertido": ele não é gentil, tem um jeito grosseiro, canalha e, ainda assim, covarde. O lance em torno do estupro é interessante pois, apesar do cara narrar um 'estupro romantizado' no bar, a gente ainda dá ao personagem o benefício da dúvida (trazendo, mais uma vez, aquele discurso de "só a palavra da mulher não é o suficiente", mesmo se o cara disser "eu de fato fiz isso" cheio de eufemismos), mas também traz uma questão que considerei interessante: AJ é um homem criado em um mundo de homens e para homens, ele certamente tem uma criação, cultura e educação diferente de homens como Keith, ele aparenta acreditar verdadeiramente que o "não" da moça foi um charme que ela jogou, ele acredita que o assédio moral que induziu o ocorrido foi uma forma de galantear, de convencer e, bêbado, em um momento fragilizado e percebendo as consequências do que fez, ele aparenta começar a compreender que sim, "talvez eu tenha estuprado ela", mas não é uma reflexão genuína sobre as atitudes que podem ter acarretado nisso e sim algo que ele só se interessa a partir do momento que o afeta. Outro momento em que o personagem aparenta não perceber/se importar com aquilo que não o afeta é a relação com o imóvel, ele vê várias coisas estranhas, mas só consegue pensar "que bacana, mais área! Como eu posso lucrar com isso?", ele vê objetos de valor de outras pessoas e trata como lixo (como a mala de Keith que mexe e desfaz de qualquer jeito ou o laptop de Tess que arremessa na cômoda), ele só quer ser bom "para compensar" quando percebe suas ações ruins, algumas por egocentrismo, outras por medo e senso de sobrevivência, o que para mim, apesar do personagem ser um crápula, sugere mais uma vez a dualidade das coisas e até nos faz pensar sobre como perdoamos homens com uma certa facilidade quando eles fazem merda em uma frequência avassaladora e logo em seguida prometem melhorar.
Sobre a protagonista, Tess engloba duas coisas que ficam muito visíveis na cena
dos policiais: um recorte de raça e gênero. Ela é uma mulher preta em um bairro marginalizado, os policiais (um deles inclusive preto, o que reforça ainda mais a questão da mulher preta como extremamente vulnerabilizada) a veem como uma louca, drogada e sequer sugerem algum tipo de apoio, o que fala MUITO sobre questões raciais, de gênero, de SAÚDE PÚBLICA (inexistente nos EUA rs) e do treinamento e serviço prestado pelos agentes de segurança, mas essa é só a cena mais explícita. Há negligência durante os telefonemas com policiais que vêem tudo como exagero, um problema pequeno aumentado 'por uma mulher histérica', Tess é silenciada quando alerta Keith sobre o cativeiro e quando alerta AJ que haverá consequências se ele irritar a mulher, ela é silenciada e apagada o tempo todo e, ainda assim, se sente culpada pelas atitudes dos outros, tenta ajudar, salvar como se fosse responsável. Existe uma confusão entre o sentimento de precisar se proteger de violências estruturais causadas por esses recortes sociais, mas também existe uma forte questão cultural que culpa a mulher por tentar se proteger (os adjetivos já citados como loucura, histeria, exagero etc, que invalidam um sofrimento estrutural) e, ironicamente, a única pessoa que a protege é a mulher monstruosa que tenta mantê-la cativa.
A mulher é outro personagem bem triste e interessante.
É uma filha da violência, a forma que ela se expressa verbalmente dá a entender que nunca houve socialização sequer com os genitores e as únicas coisas que ela compreende são a violência (na qual ela foi criada e teme, abomina e reproduz) e o amor (que ela vê naquele televisor e almeja), sendo que ambos acabam se mesclando. O fato dela prender as pessoas, por exemplo, vejo como a forma que ela provavelmente aprendeu a amar, já que o 'pai' fazia isso, enquanto a cena do Keith provavelmente foi uma forma de abominar enquanto reproduzir violência, já que ela fica nervosa com a gritaria e encerra da pior forma possível. Acredito que o fato dela ser super forte seja algo meio simbólico também, que o anseio pela maternidade como uma forma pura e genuína de amor e por proteger a cria a torna assim. Quando a Tess aceita a mamadeira e o afago, creio que a personagem vê como um carinho mútuo e por isso busca forças para manter aquela relação consigo, para proteger o bebê com sua própria vida e atacar quem ameaçar sua cria. Em contrapartida, ela não consegue violentar quem ofereceu esse amor genuíno.
Sobre o maníaco, acredito que seja unânime que é um monstro, uma personificação do vilão (digo personificação por crer que o vilão é um sistema muito mais cultural do que uma pessoa em si) responsável não apenas pelos crimes das fitas, mas provavelmente pela queda de valor do bairro devido ao desaparecimento de mulheres, que nunca foi punido e decidiu como viver e morrer, assim como o que fazer com as vidas dessas mulheres.
Enfim, não acho que seja o filme do ano, longe disso, mas é um filme bem bacana principalmente considerando que é um filme com uma pegada mais popular, que diverte, bota pra pensar sem muito juízo de julgamento, apenas contextualizando as situações e, apesar da fantasia, acaba sendo estranhamente familiar, o que é péssimo. Diria que foi uma grata surpresa.